24 de abr. de 2011

Outro Jesus

Luiz Fernando Veríssimo
“Eloi, Eloi, lama sabactani”. As palavras de Jesus na cruz – “Deus, Deus, por que me abandonaste?” – estão em dois dos evangelhos, o de Mateus e o de Marcos. Os de Lucas e João não as registram. Não há muitas divergências entre os evangelhos, embora o quarto, de João, seja tradicionalmente considerado o mais literário, ou eloquente.
    Os três primeiros, chamados “sinóticos” porque foram escritos mais ou menos ao mesmo tempo, incluem a passagem de Jesus em Getsêmani, quando ele pede a Deus que não exija seu martírio final e que passe dele o cálice amargo do sacrifício.
    O evangelho de João, escrito depois dos outros três, não cita Getsêmani ou qualquer outra evidência de uma reação de Jesus ao seu destino. E a maior evidência desta reação, o apelo de Jesus na cruz para que Deus interrompa seu martírio como sustou a mão de Abraão quando este, seguindo suas ordens, preparava-se para imolar o próprio filho, só está em dois dos evangelhos e, curiosamente, nunca recebeu muita atenção nos cânones cristãos. Mas se Jesus se sente abandonado na cruz sua história e o significado do seu sacrifício são outros.
    O Jesus suplicante de Mateus e Marcos não é o mesmo Jesus de Lucas e João. É um homem apavorado diante da perspectiva da morte e do silêncio do Pai, sem entender por que o mesmo poder que lhe permitiu fazer milagres não o salva da execução. Nada é mais humano no Cristo dos dois primeiros evangelhos do que o seu medo. Antes deste Cristo sacrificado há as gerações que profetizaram e prepararam a sua chegada, depois virão sua ressurreição e sua glória, mas naquele momento só há o terror da morte comum a todos os homens.
    “Eloi, Eloi, lama sabactani”. Quem não ouviu ou não registrou o grito desesperado naquele dia em Golgota não quis saber de um Cristo perplexo em vez de um Cristo resignado ao seu destino e cúmplice do seu fim. Mas a perplexidade de Jesus na cruz é o que mais o aproxima de nós. Mateus e Marcos não escreveram, afinal, só relato da revolta natural de um condenado à morte, o mistério e a grandeza da cena estão presentes nos seus evangelhos. Mas a frase que os outros ignoraram, e que a Igreja nunca explicou, ainda ecoa, dois mil anos depois.
De O Globo

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