20 de mar. de 2011

Zeca Baleiro faz curadoria de festival de "músicos cafonas" em São Paulo

Odair José na Virada cultural em São Paulo
    O tema é recorrente desde pelo menos 2002, quando o historiador Paulo Cesar de Araújo publicou o perturbador livro “Eu Não Sou Cachorro, Não”. Ali, ele defendia que a rejeição disseminada contra os músicos brasileiros rotulados como “cafonas” se devia menos a razões estéticas que a preconceitos de origem social, nível de instrução formal, etnia, sexo, sexualidade etc. A provocação tem prosperado desde então, de maneiras diversas, e a mais nova delas será testada a partir deste sábado,19,pelo Sesc Pompeia de São Paulo, no festival “Salve o Compositor Popular!”.
    Sob curadoria do músico emepebista maranhense Zeca Baleiro, o palco quase sempre dominado por artistas e espectadores que não se julgam “cafonas” será ocupado neste e no próximo fim-de-semana por sete standards da música mais-que-popular brasileira: Odair José (na sexta-feira), Agnaldo Timóteo, Claudia Barroso (amanhã), Benito di Paula, Vanusa (dia 26, com ingressos já esgotados), Luiz Ayrão e Márcio Greyck (dia 27).
    O festival tem uma motivação a mais: imagens serão captadas pela diretora Helena Tassara para compor o documentário “Vou Tirar Você Desse Lugar”, que pretende ser mais um fórum de debate sobre a difícil relação dos admiradores supostamente cultos de música brasileira com seus representantes mais populares. Um ponto de partida óbvio é o da frase de efeito (verdadeira) do homem-forte do disco nos anos 70, André Midani, de que tais artistas trabalhavam para sustentar o prestígio de vertentes que, embora mais elitistas, tomaram para si a sigla MPB.
    “Comecei gravando na CBS (hoje Sony), e por dois anos vendi bastante disco lá. ‘Vou Tirar Você Desse Lugar’ (1972) vendeu quase 1 milhão de compactos, mas eles já tinham muitos artistas que vendiam, a começar por Roberto Carlos. Quando fui para a Philips (atual Universal), realmente o elenco da gravadora não vendia”, Odair José confirma a lenda. “A Philips era a última ou penúltima do mercado em vendas. Tinha Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa. Esses caras vendiam 5 mil, 3 mil, e a gente vendia 500 mil discos.”
    Goiano de Morrinhos que chegou a dormir em praias e banheiros de aeroporto quando chegou ao Rio de Janeiro, Odair usa de suave imodéstia para relatar o impacto de sua chegada à Philips: “Quando fui para lá, Tim Maia estava arrebentando e Raul Seixas tinha sio contratado. A empresa pulou pra primeiro lugar, passou a própria CBS, porque nós três estávamos vendendo muito. Foi quando André fez esse comentário de que a gente sustentava a empresa para que ela pudesse segurar esses outros talentos”.
    Hoje até há uma vertente que defende a diretriz “Artista Igual Pedreiro”, como no título do álbum de 2008 do grupo matogrossense Macaco Bong. Mas, nos anos 70, odaires eram os pedreiros que erguiam os edifícios de luxo de chicos e caetanos, para que esses pudessem proclamar o “salve o compositor popular!” do verso de “Festa Imodesta” (1974), composta por Caetano e gravada por Chico. “Esses eram rotulados como cantores de esquerda. Todos gostavam de dólares, de ser milionários, mas eram de esquerda. Eu tinha pavor daquilo”, afirma o mineiro de Caratinga Agnaldo Timóteo, que antes de engrenar como cantor foi lutador de “catch” e motorista de Angela Maria - leia a entrevista completa com Agnaldo Timóteo.
    Claudia Barroso, hoje com 79 anos, é mineira de Ipirapitinga e está radicada em Fortaleza (CE), no Nordeste sempre especialmente amistoso com nossa música verdadeiramente popular. Antes de emplacar no início dos anos 70 como jurada de Silvio Santos e namorada-de-araque do baiano Waldick “Eu Não Sou Cachorro, Não” Soriano, foi crooner do Copacabana Palace, ao lado do celebrado maestro Moacir Santos.
    Migrara para o Rio aos 10 anos, porque a mãe foi ser governanta numa “casa chique”. “Meu pai tinha se suicidado por causa da queima do café pelo Getúlio Vargas. Getúlio odiava os americanos, preferia queimar o café a mandar pra ele”, ela lembra. Casou-se aos 16 e teve dois filhos com o marido chofer, antes de se separar e poder se jogar à carreira de cantora. Nos anos 50, virou caloura do programa radiofônico de Ary Barroso, e de cara foi gongada porque trocou “risque o meu nome do seu caderno” por “teu caderno”, ou vice-versa, na canção composta pelo próprio apresentador.
    “Dali já fui contratada pelo Copacabana Palace. Moacir Santos era bruto à beça não admitia uma cantorinha começando ali do lado dele. Eu cantava em inglês, francês, italiano, árabe, porque era obrigado. Quando cantava em inglês era decorado, mas o diretor sabia e ensinava o que eu estava cantando.” No Golden Ball, em São Paulo, foi acompanhada por um pianista chamado Johnny Alf, um dos inventores do estilo que ficaria mundialmente conhecido como bossa nova.
    A imagem “cafona” se intensificou, segundo ela, quando apareceu numa foto com Waldick (de quem havia gravado “Você Mudou Demais”, em 1971), ele com um chapéu na frente do rosto, simulando um beijo oculto. “Me arrependo muito de ter feito a foto, porque me chamaram de cafona. Eu não me considerava cafona. Fiz uma com uma toalha no corpo, pelada por baixo, uma fotografia terrível, que depois Tônia Carrero fez igual. Eu topava porque queria aparecer, não sou besta.”
    Com vozeirão impostada à maneira de cantoras de gerações anteriores, como Dalva de Oliveira, Claudia primeiro atirou-se às versões de sucessos italianos românticos. “Dio, Come Ti Amo” virou “Deus, Como Te Amo” (1971), em versão assinada por Demetrio Carta, nome de batismo do jornalista Mino Carta. “Mino é meu amigão, muito gentil, muito amável, um cavalheiro. Levei Silvio Santos ao jornal pra conhecer ele. Aprendi muito com Silvio o que era fazer promoção”, ela conta. Nos anos seguintes, mudou o sexo de Roberto & Erasmo (transformou “Amada Amante” em “Amado Amante”) e foi protofeminista, cantando “Eu Não Tive um Bom Marido” (1975) e falando em linguagem liberal sobre “Casamento Fracassado” (1975), divórcio e virgindade.
    Claudia, Odair e Agnaldo, entre outros “cafonas” tinham isso em comum: frequentemente retratavam (e antecipavam) comportamentos sociais em suas canções. Agnaldo camuflava amores homossexuais em canções como “Amor Proibido” (1974), “A Galeria do Amor” (1975) e “Perdido na Noite” (1976). Odair tratava de prostituição (“Vou Tirar Você Desse Lugar”), pornografia (“Revista Proibida”, 1972), pílula anticoncepcional (“Pare de Tomar a Pílula”, 1972), experiências com drogas (“Viagem”, 1975), dogmas religiosos (“O Filho de José e Maria”, 1977). Segundo defende Paulo Cesar de Araújo, tratavam-se, todas essas, de afrontas aos costumes pregados pela ditadura militar, mesmo que (quase) nunca tratassem de questões políticas ao gosto da MPB.
       “O que a gente faz era ‘brega’, agora é ‘cult’. São definições muito difíceis de entender, no meu entender”, afirma Odair, captando mudanças de sintonia sobre as quais ele não tem controle. “Não sou grande músico, compositor ou compositor, mas sou aplicado, procuro fazer o melhor que posso fazer. Se você for pra ver Odair José, não pode esperar que ele seja outra pessoa, que ele seja o Steely Dan”, afirma, citando uma banda norte-americana setentista de rock progressivo jazzificado da qual, revela, é grande fã.
    Não são afirmações da boca para fora. Um dos orgulhos que Odair traz é o de ter como acompanhantes em seus discos músicos excepcionais, como aqueles que se tornariam respeitados internacionalmente como o grupo “fusion” Azymuth, o futuro maestro de Chico Buarque (Luiz Claudio Ramos) e outros que adiante formariam a Banda Black Rio, na curva entre funk, soul, jazz e samba. No estúdio todos se misturavam, mas muitas vezes soavam separados e estanques aos ouvidos dos brasileiros.
    Atualmente, Odair prepara um novo disco, sob produção de Zeca Baleiro, naquela mesma clave de atiçar o sono dos preconceitos e barreiras entre nichos da dita MPB. Trará parcerias dele com Baleiro, Arnaldo Antunes e Chico César. “Foi o Zeca que me convenceu, eu nem pretendia gravar mais disco. Meu repertório já é muito extenso, o formato do mercado hoje é outro. Gravadoras deviam ter outro nome, porque elas não gravam mais disco, só fazem distribuição”, afirma, como de hábito antenado com o mundo ao seu redor.
Do IG

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