9 de fev. de 2011

O vinho de Hitler

David Coimbra
    Essa história aconteceu quando Hitler ainda não era o Führer, mas já galvanizava as massas de Munique com sua oratória feroz, nos albores dos anos 20 do século 20. Quer dizer: ele não se resumia mais apenas a um fracassado pintor de paisagens, nem a um candidato a arquiteto renegado, já desfrutava de certo conceito como líder político. Porém não muito. Tratava-se de uma estrela de brilho local.
    Por essa época, alguns de seus apoiadores decidiram apresentá-lo à alta sociedade bávara. Então, certa noite, lá estava aquele tipo estranho, atrás de seu bigode amputado, metido em seu terno azul-escuro surrado, convivendo com o crème de la crème da aristocracia alemã. E eis que o anfitrião, numa deferência especial ao convidado, serviu-lhe um vinho fino, uma das pérolas da sua adega pessoal.
Aí Hitler cometeu um horror que bem poderia servir de augúrio para o que iria aprontar nos anos vindouros: temperou o vinho com açúcar! Algo como se Lula tivesse pingado adoçante no Romanée Conti que Duda Mendonça lhe ofereceu para festejar a vitória de 2002.
    Hitler era culto, era lido, mas não era sofisticado. O espírito se sofistica por meio do cultivo dos prazeres da vida, e os prazeres da vida não interessavam a Hitler. O que não deixavam de notar seus contemporâneos. Quando ele começou a bajular a esposa desse mesmo anfitrião do vinho, uma beldade germânica chamada Helene, ela tranquilizou o marido:
    – Não se preocupe. Ele não é um homem. Ele é um neutro.
    Um neutro. Que definição precisa. Não significa que fosse homossexual, como muitos de seus inimigos afirmaram depois da guerra. É que Hitler, ao que tudo indica, não se interessava pela coisa. Suas energias estavam todas canalizadas na tomada do poder e na consecução de seus planos sinistros para a Alemanha.
    Hitler não bebia, não fumava e não gostava de comer. Com a idade, transformou-se em um quase abstêmio e em um vegetariano perfeito. Não tinha amigos íntimos, a família restringia-se a uma irmã que pouco via.
Sintomático.
    Tenho a convicção de que se Hitler ou outros personagens-chave da História fossem mais mundanos, se gostassem mais de beber, de comer, de rir com os amigos e das belas fêmeas da espécie, se eles cultivassem tais interesses, o mundo seria um lugar bem melhor para se viver. Afinal, são esses pequenos prazeres que tornam os seres humanos... humanos.
    Mais até: os prazeres da vida cevam a criatividade. Donde, aposto no sucesso de talentos como Carlos Alberto e Zé Roberto na Dupla Gre-Nal. São jogadores que sorvem os deleites da vida, sabe-se. E aqui eles continuarão a sorvê-los, mas com a dose de moderação que se impõe em uma cidade menor, com vigilância maior. Que usem a imaginação que lhes conferem as delícias da existência. E deixem as tarefas duras de marcação para os germânicos da zaga e da volância.
O livro definitivo
    Li a história do crime que Hitler cometeu contra o bom vinho do seu anfitrião bávaro num livro do professor britânico Ian Kershaw, “Hitler”, talvez a melhor e mais completa biografia do ditador austríaco de todas as centenas já escritas nos últimos 70 anos. Tomei conhecimento desse livro monumental através de dois amigos: Fernando Eichenberg, o Dinho, que entrevistou Kershaw em Paris e o elogiou aos quilos, e o Cyro Silveira Martins Filho, um homem que conhece e gosta de História. O Cyro me disse:
– Não há nada melhor sobre Hitler.
    Pois acho que está certo. A edição CONDENSADA da biografia tem mais de mil páginas de um texto refinado como o aristocrata que ofereceu vinho a Hitler na década de 20. Ler esse livro é um prazer que só quem gosta da vida mundana é capaz de apreciar por inteiro.

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