2 de jan. de 2011

O show que não houve

    Ferreira Gullar
    Na crônica que publiquei aqui, sobre Noel Rosa, falei de um show sobre ele, que pensei realizar, mas desistira do projeto ao saber que este é o ano do centenário de seu nascimento e que muita coisa já se estava fazendo para homenageá-lo.
    A ideia do show me surgira ao ouvir, depois de anos, os sambas de Noel, e achei que muita gente também iria gostar de ouvi-los de novo.
    O show imaginado por mim teria apenas uma intérprete, poucos músicos e muita conversa sobre o compositor e sua curta vida. A mistura dessas duas coisas me parecia interessante, mas certamente não era lá uma sacação tão original.
    Devo esclarecer que nunca me atrevi a escrever ou realizar qualquer espetáculo musical e não seria agora que me aventuraria a fazê-lo.
    Sonhei com ele, imaginei-o: uma cantora com um violão a interpretar os sambas deliciosos de Noel que, se não estou equivocado, deu à nossa música popular muito mais malícia, bom humor e um modo irreverente de cantar o amor e outros assuntos às vezes estranhos ao nosso repertório musical. Ele só raramente mostrava-se romântico e, quando o fazia, jamais descambava para o sentimentalismo deslavado. "Enquanto você faz pano/ Faço junto do piano/ Estes versos pra você." Era isso que deveria mostrar o show que não houve.
    Porque pensei numa cantora apenas, com um violão e uns poucos músicos? Porque não vejo suas músicas num grande musical, executado por grandes orquestras. Vejo-o, como de fato foi, cantando em rodas de boêmios com seu violão.
    Certamente, pode-se levar suas composições à execução de grandes orquestras, mas esse não seria o Noel com que me identifico e comovo. Por isso, o meu show começaria com a cantora interpretando, com muita graça, seu primeiro sucesso: "Eu hoje estou pulando que nem sapo/ Pra ver se escapo/ Desta praga de urubu/ Já estou coberto de farrapo/ Eu vou acabar ficando nu".
    Se fosse noutra época, a cantora poderia ser Nara Leão; hoje, escolheria Marisa Monte ou Adriana Calcanhotto. Já imaginou o encanto novo que qualquer delas emprestaria aos sambas de Noel?
    "Quem dá mais?/ Por uma mulata que é diplomada/ Em matéria de samba e de batucada/ Com as qualidades de moça formosa/ Fiteira, vaidosa e muito mentirosa", "Quem dá mais/ Por um violão que toca em falsete/ Que só não tem braço, fundo e cavalete/ Pertenceu a Dom Pedro, morou em palácio/ Foi posto no prego por José Bonifácio."
    E entre uma música e outra, diria de sua irresistível vocação para a boemia, das noitadas no Café Nice, dos papos com Lamartine Babo, Ismael Silva, Orestes Barbosa, sem falar nos instrumentistas e nos cantores, como Custódio Mesquita e Aracy de Almeida, sua intérprete preferida.
    "Eu sou diretora da Escola do Estácio de Sá/ E felicidade maior neste mundo não há/ Já fui convidada para ser estrela de nosso cinema/ Ser estrela é bem fácil/ Sair do Estácio é que é o "x" do problema".
    Haveria muita coisa interessante a contar da vida de Noel, que fez sambas com 56 parceiros, sem contar os sambas de outros, a que acrescentou um verso aqui, um acorde ali, sem querer tirar patente.
    É que compor, cantar e farrear era o seu prazer maior, sem o que a vida não fazia sentido. Nascera para aquilo, tanto que, enquanto os outros sambistas buscavam os meios profissionais, o estúdio das rádios, os restaurantes frequentados por gente do ramo, Noel se enturmava mesmo era com os malandros dos botecos de subúrbios e das favelas.
    Teria que falar também de seus namoros e amores, que não foram poucos e nem sempre deram certo: "Se alguma pessoa amiga/ Pedir que você lhe diga/ Se você me quer ou não/ Diga que você me adora/ Que você lamenta e chora/ A nossa separação/ E às pessoas que eu detesto/ Diga sempre que não presto/ Que meu lar é o botequim/ E que eu arruinei sua vida/ Que não mereço a comida/ Que você pagou pra mim". Lindaura, com quem o obrigaram a casar-se, sofreu o diabo em suas mãos, mas foi no colo dela que descansou a cabeça, pouco antes de deixar para sempre sua Vila Isabel e as noitadas de farra.
    Mas um show não pode terminar, assim, para baixo, pensei. Foi quando me voltei e vi, na última fila da plateia, um sujeito magro, de queixo torto, que se levantou e saiu, antes que a luz acendesse.
Da Folha de S. Paulo

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