23 de jan. de 2011

Cantando pela serra do luar

Ferreira Gullar
NA ABERTURA da exposição comemorativa de meus 80 anos, no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio, fui surpreendido por um coral de jovens estudantes que, postado na escadaria, à entrada do museu, começou a cantar "O Trenzinho do Caipira". Após o primeiro momento de espanto, passei a cantar com eles, baixinho, claro, pois não desejava ser ouvido; é que não resisti ao impulso de participar daquele momento.
    Não havia ali, a meu ver, um homenageado e, sim, uma encantada confraternização.
    Mas, por incrível que pareça, enquanto cantava e me confundia com as demais pessoas ali presentes, veio-me uma constatação: a do contraste entre aquele momento e o outro, distante 40 anos, quando pus letra na tocata da "Bachiana nº 2", de Villa-Lobos.
    Muita gente conhece a história do "Poema Sujo", escrito por mim em Buenos Aires, em 1975, mas o que constatei, de súbito, nesse momento de confraternização, foi o contraste entre a alegria de agora e o desamparo em que me encontrava naquele apartamento da avenida Honorio Pueyrredón, certo de que o mundo desabava sobre minha cabeça.
    Não pretendo me valer desse pretexto para falar de mim mesmo ou do "Poema Sujo", de que a letra do "Trenzinho" é parte. Não é isso. A surpresa me arrebatou, ali, à entrada do museu, diante daqueles meninos e meninas que o cantavam, reacendendo, inesperadamente, em mim, a manhã de maio de 1975, quando, como quem faz a última coisa possível, escrevia aquele poema que, mal sabia eu, iria tornar-se o mais conhecido e traduzido dentre os tantos que escrevi na vida.
    Assim foi que, subitamente, estou de volta àquele momento. Estou desgastado e ferido pelos anos de exílio, pelas perdas, pelas decepções e derrotas. A família, os amigos, o Rio de Janeiro, com suas praias e montanhas lilases, estão fora de meu alcance, e não me conformo com isso. É que, então, ali, era apenas um poeta às voltas com um poema que inventava -a única alegria possível.
    Agora, em 2010, diante do coral, no hall de entrada do MNBA, o tempo se abre como um abismo e me suga e me atira, outra vez, para 40 anos atrás, naquele instante esvaído no curso da vida, mas que a cantiga do coral me traz de volta, sem que ninguém ali o perceba, cantando que estão ou encantados com o canto, senão eu que, não obstante, continuo a cantar com eles.
    O presente é canto vibrante mas, dentro dele, estou eu-outrora, diante da máquina de escrever Lettera 22, inventando o "Poema Sujo". E é nesse momento do poema, quando lembro das viagens de trem que fazia com meu pai, que a "Bachiana nº 2" invade o quarto (a "Bachiana" que, quando ouvi pela primeira vez, me fez lembrar daquelas viagens e que agora, ao contrário, vem trazida pela lembrança delas). E a letra que, durante 20 anos, tentara escrever, sem o conseguir, escrevo-a então em menos de 20 minutos:
"Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade e noite a girar."
    A mesma letra que ouço agora na voz dos garotos, nesse começo de noite em dezembro de 2010. Sim, a mesma, mas outra, pois a que ouvia, escrevendo-a, era quase silêncio, murmúrio que se juntava à melodia de Villa-Lobos tocando na vitrola. E me pergunto, agora, quando escrevo esta crônica, de que afinal somos feitos, se de matéria ou de memória. Mas, veja bem, memória não é passado? Ou não é? Tendo a pensar, fora da lógica aparente, que tudo é presente, todo o vivido, só que, em geral, estamos ocupados demais com o agora para nos darmos conta disso.
    De qualquer modo, não poderia nunca imaginar, naquela manhã distante, que aquele murmúrio se tornaria canção, que aqueles versos um dia seriam um canto público na voz de meninos e meninas do meu país, décadas depois, numa noite de alegria e comemoração, quando o que foi sofrimento e desespero se apagou para sempre, pois a própria vida, na sua alquimia, os mudou em festa.
"Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar
Cantando vai pela terra, vai pela serra, vai pelo mar."
Da Folha de S. Paulo

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