19 de dez. de 2010

Reencontro com Antonin Artaud

Ferreira Gullar
    NOS MEUS primeiros anos no Rio de Janeiro, tornei-me rato de livraria, não apenas porque gostava de livros, mas também porque, muitas vezes, necessitava encher o dia.
    Meu emprego era na "Revista do IAPC", que ficava na rua Alcino Guanabara, quase em frente ao bar Amarelinho. Se nenhum amigo passava em minha sala para bater papo nem me ocorria nenhuma ideia para um poema, começava a me sentir ansioso e saía a andar pelas ruas.
    Ia parar em alguma livraria ou numa loja de aves, rua Sete de Setembro, quase esquina com rua Primeiro de Março.
    Essa loja fedia muito, tantas eram as aves que havia ali, presas em grande gaiolas. Havia de tudo, de canários-da-terra e araras coloridas até aves estranhas, como um nhambu, pernalta e meditativo. Voltei várias vezes só para vê-lo e tomar um caldo de cana gelado num boteco que havia perto.
    Mas, afinal, o que me atraía àquela loja de aves? É que algo ali me lembrava "Les Chants de Maldoror" ("Os Cantos de Maldoror"), de Lautréamont, que lera recentemente na Biblioteca Nacional e, por mais que fuçasse, não o achava em nenhuma livraria.
    Mas achei uma coisa inesperada: um exemplar da revista "Les Cahiers de la Pléiade" (primavera de 1949), que me deixou maravilhado: é que uma parte dela era dedicada a Antonin Artaud, incluindo um poema inédito e um testemunho de Claude Nerguy, contando a visita que lhe fizera, poucos dias antes de sua morte, numa casa de repouso, em Ivry, para onde tinham-no transferido depois de várias internações em manicômios. Nerguy e sua companheira ficaram chocados ao encontrá-lo tão magro, de camisa suja e olhar alucinado.
    Durante aquela visita, Artaud tomou de um martelo e começou a bater violentamente num bloco de madeira, enquanto declamava exasperado um poema incompreensível: "É assim que marco o ritmo de meus versos", berrava.
    No final da visita, quando Nerguy lhe pediu que autografasse um livro, escreveu: "Para Claude, sob a condição de manter-se só, uma vez que sou inimigo da sexualidade". Quando deixam aquele quarto opressivo, a moça diz: "Em lugar de olhos, ele tem relâmpagos".
    Na revista, havia um poema inédito de Artaud em que ele se dizia "um puro espírito" e insultava Deus. Era um poema estranho, impactante e belo. Foi então que decidi datilografá-lo em várias cópias e distribuí-las entre meus amigos.
    Certo dia, um deles pediu-me a revista emprestada, alegando estar escrevendo um artigo sobre Artaud para um suplemento literário. Hesitei em emprestá-la, mas ele jurou que a devolveria em quatro dias, no máximo. Terminei cedendo. Ele pegou a revista e sumiu.
    Passados os quatro dias, tentei localizá-lo em vão. Meses depois, deparo-me com ele na rua. Desculpa-se, alegando que viajara inesperadamente porque sua mãe adoecera, acabava de voltar e ia me procurar para devolver a revista. "Vou buscá-la agora", disse, e sumiu de novo.
    "Livro não se empresta" -advertiu minha amiga Lucy Teixeira-, "ainda mais uma preciosidade como essa". Tinha razão. Mesmo assim, ao longo dos anos, não me emendei, continuei a emprestar livros preciosos ou raros, que nunca me devolveram.
    E, ao longo desses anos -mais de 50-, de vez em quando, se lia ou ouvia algo sobre Artaud, sofria de novo a perda da revista e maldizia o caráter daquele sujeito que descarada e insensivelmente se apropriara de uma coisa que, para mim, tinha valor inestimável.
    Faz pouco, falei disso com Kaira Cabañas -crítica de arte e curadora de importantes mostras internacionais-, que prepara uma exposição sobre Antonin Artaud, a se realizar no Museu Reina Sofía, de Madri.
    Ela deseja expor ali alguns exemplares daquela edição pirata que fiz do poema de Artaud, em 1954. Só que aqueles a quem dei os exemplares já se foram e nem mesmo a que guardei comigo existe mais. Nem poderia imaginar que teriam importância no futuro. Em compensação -pasmem vocês-, Kaira Cabañas acaba de me enviar um exemplar daquela revista, de cuja perda jamais me refizera.
    Ao abrir o pacote e me deparar com ela, de capa amarelo-ocre, pensei estar vivendo um sonho. E, como se sonhasse, procurei nela o texto sobre Artaud, o poema que copiara... estava tudo lá. Maravilha! É, de uns tempos para cá, deu para chover na minha horta.

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